Bebedor de luas me embriago, negro no fundo negro das vielas e me dissolvo, sem passo, no abismo onde o tempo naufraga sem lembrança.
Um rio sustenta a tua boca, duas margens de água e carne, duas feridas de um desejo que do corpo se perdeu.
Não fosse a tua boca água nua esperando um barco e morreria eu de amar, e morrerias tu sem mar.
Mas do sempre que fomos o que restou? Silêncio aos pedaços, palavras que em lágrima se soletram.
E são de aves as folhas que tombam e não há chão nem vento onde se deitem.
Melhor dormir se o tempo se faz sem ti e guardar-te em sonho até tu mesmo seres noite.
Desperto: todas as pedras secaram, saudosas de carícia tua. Todas as luas ficaram por nascer sedentas dos olhos que são teus.
Depois volto a beber o luminoso veneno em que escureço e o dia regressa, mendigo e magro, buscando em mim lembrança de um amor que de tanto ser não saberá nunca ter lembrança.
Um comentário:
MEMÓRIA DE UM AMOR QUE NUNCA FOI
Bebedor de luas me embriago,
negro no fundo negro das vielas
e me dissolvo, sem passo, no abismo
onde o tempo naufraga sem lembrança.
Um rio sustenta a tua boca,
duas margens de água e carne,
duas feridas de um desejo que do corpo se perdeu.
Não fosse a tua boca
água nua esperando um barco
e morreria eu de amar,
e morrerias tu sem mar.
Mas do sempre que fomos
o que restou?
Silêncio aos pedaços,
palavras que em lágrima se soletram.
E são de aves
as folhas que tombam
e não há chão nem vento onde se deitem.
Melhor dormir se o tempo se faz sem ti
e guardar-te em sonho
até tu mesmo seres noite.
Desperto: todas as pedras secaram,
saudosas de carícia tua.
Todas as luas ficaram por nascer
sedentas dos olhos que são teus.
Depois volto a beber
o luminoso veneno em que escureço
e o dia regressa,
mendigo e magro,
buscando em mim
lembrança de um amor
que de tanto ser
não saberá nunca ter lembrança.
(Mia Couto)
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