quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O Sono



O sono, por exemplo: trata-se de um grande mistério cotidiano.
 
Todos os dias, mais ou menos à mesma hora, presenciamos as coisas todas irem ficando cada vez mais longe, até as mais importantes, aquelas fundamentais, enquanto nosso corpo vai cedendo a uma espécie de delicioso torpor. Na gigantesca retorta do nosso cérebro, até os nossos pensamentos - representações de coisas - também são pouco a pouco diluídos e amalgamados, acabando por se rarefazer numa espécie de fluido espectral, extenso e inabarcável feito um mar. Submersos nessas águas primordiais, vagamos junto com uma infinidade de fragmentos de coisas fora do lugar, nós nesse momento sendo apenas um fragmento a mais. Abismados e esmagados pela súbita leveza de tudo, estamos sonhando - o mundo desperto tem, então, a mesma relevância que teriam os restos de um antigo naufrágio. Dizem os cientistas que esse momento de abandono é um modo de escapar da loucura, além de ser bom para cicatrizar nossas feridas - as da carne e as da alma. Mas nós somos um tanto mais ambiciosos.

Sonhando, visitamos a alcova de uma certa beleza adormecida. Eis aí um mistério engastado em outro, de um modo que nenhum joalheiro desperto poderia fazer com tanto engenho - o que, obviamente, não impede ninguém de tentar, sendo esse, a nosso ver, o modo como nasce uma grande parte das jóias que há no mundo desperto. E que nos faz indagar: com que sonha uma beleza adormecida? Fazemos essa pergunta sem nenhuma esperança de resposta, um pouco por despeito, um pouco para demonstrar que nem a psicanálise nem o feminismo conseguiram estragar inteiramente este mundo.

Mas é preciso ir em frente, impulsionados pela correnteza sutil que nos permite bailar em volta de tudo que não compreendemos, visitando as cidades que foram apenas imaginadas e buscadas - jamais palmilhadas. E são esses não-lugares que afloram, em certos momentos, quando vagamos, acordados, pelas ruas das cidades que construímos. É por causa dessas cidades sonhadas que enfrentamos a solidez do mundo desperto. Para que elas tenham janelas dando para uma alcova que receba o espectro cansado, inclinado sobre o leito da beleza adormecida.

E estremecemos quando a luz adentra inexorável, expulsando o sono - incitando-nos a viver, viver, viver.


[Los Labios]

Um comentário:

Leandra Maia disse...

Belíssimo texto!
Meus parabéns!

Leandra