quinta-feira, 27 de maio de 2010

Tudo Por um Bom Biscate

Definitivamente um mau hábito. Mas como não ceder a tentação? Ignorar a conversa alheia é irrealizável quando ela atinge em cheio a nossa curiosidade. Seria como recusar uma cantada da “Lúcia Veríssimo” em 1989. Não dava. Melhor se render à indiscrição, como nos renderíamos à atriz, e se deliciar com juras de amor, brigas, traições, aventuras, pequenas confissões privadas que absolutamente não nos dizem respeito. Mas quem mandou elas se desenrolarem ao alcance da nossa acurada audição?
Abrir mão desse prazer é como ir ao Rio de Janeiro e não “fazer uma Carioca na Farme de Amoêdo”. O Redentor que nos perdoe. Foi-se o tempo que ir a Cidade Maravilhosa, significava apreciar o Corcovado e passear de Bondinho.

Conversas alheias surgem do nada e absorvem a atenção. Acompanhá-las, porém, da trabalho. No bar ou restaurante; você lá sentada, mortificada por ter saído no grupo errado, quando, de repente, de suas costas, surge a frase balbuciada, porém definitiva: “Na minha cama você não dorme mais”. Ó meu papa! Ninguém em sã consciência ignora um ultimato desses.

A frase salva sua noite, mas nessa posição fica difícil ouvir detalhes. Você arrasta então a cadeira para xeretar. Rapidamente, vê duas jovens. Prossegue imiscuindo-se no assunto alheio. Passando a mão disfarçadamente pelos cabelos, certifica-se de que não descobriram seu interesse. Bem colocada, enfim, faz a jogada final: Rompe relações com os chatos e chatas da sua mesa, força as solas das sandálias contra o chão (as pontas não, se não marca o couro), pressiona as costas contra o espaldar e inclina a cadeira para trás desafiando a lei da gravidade, mas bem posicionada, se concentra em ouvir mais.

As palavras vêm pausadas, sílabas pronunciadas lentamente, rispidamente, num tom acusador: “Quenga, fácil, pública, jerebe, bagaxa, mische”... A voz deve ser daquela que viu de frente. O silêncio breve e ela continua: “ vagabunda, mundana, marafaia, marafona, dadeira, bisca, frega, catráia, bíscate, rameira, bagaceira, decaída, puta e piranha”. Estupefata, você não se contém em sua excitação e corre em busca de testemunhas. “Meu Deus! Ouviu? Ela deve ser professora de português! E está uma fera”, você quase grita, pega e sacode o braço da mulher sentada ao seu lado, que devolve um olhar espantado sob as sobrancelhas unidas e franzidas, completamente chocada diante de sua agonia tão súbita depois de tanto tempo indiferente.

Melhor não falar com alguém tão desinteressante, você pensa. Volta apressada para a refrega. O local na verdade um misto de bar e restaurante começa a encher. O som propagado no ar agora vem tumultuado por várias vozes. “Hei de ouvir”. Você clama. De repente capta: “Ela foi melhor do que eu?” Ó meu Papa! E agora? Ela não devia ter perguntado isso. E se a namorada traidora cai na besteira de ser honesta?

As pessoas não paravam de chegar e se aglomerar entre as mesas. Num esforço, você aterrissa a cadeira e olha descaradamente para lá. Através do vão, entre as costelas e o braço direito da loira, de costas nuas, numa frente única deliciosa, avista um fiapo da outra (a traída). A moça era de bem. Um pedaço até. A semente da discórdia não deveria ser assim muito superior. E essa ainda tem bom vocabulário! Namorada bonita com mais de mil palavras é coisa rara. Certamente, a outra (o galho) foi pior. No máximo na mesma situação, ela conseguiria xingar “vagabunda, puta, piranha”, apenas. E ainda usaria o masculino, por falta de segurança para subjugar as palavras à sua personalidade.

Dez segundos e mais nenhuma frase. Quinze segundos e nada. Você levanta. Vai ter de ir lá ver o que ocorre. Mal se ergue, outra loira (uma habitué) vira-se e pergunta se pode pegar a cadeira. Irritada, você responde grosseira. “Só vou ao toilette. Mas se você quer tanto sentar, na volta sente-se no meu colo”. Desorientada a loira (menos de mil palavras, com certeza) responde: “Ah! Tudo bem”. E aí põe a dúvida: Era um “Tudo bem, não quero mais a cadeira” ou “Tudo bem, eu sento no seu colo, com muito prazer”. No entanto, agora, nem saber, nem pensar em se dispersar. Sorri e com dois passos parte para o grupo ao lado da mesa das “amigas” em crise. Disfarça e atiça os sentidos.

“Eu te amo”, você ouve sussurrar a “maleável” que armou o qüiproquó. “Eu também te amo”, responde a tigresa do bom vocabulário. Desolada você observa. Chegaram ao The End sem que você testemunhasse o melhor do filme. Elas, transpirando naturalidade, armam o maior abraço (amasso), como se fossem apenas velhas amigas se cumprimentando calorosamente após longa data. Olhando fixamente a cena, em completo desalento, você quase chora quando a loira inacreditavelmente abre os olhos, pisca para você e continua o abraço lhe observando. “Ó meu Papa! Mas que leviana a moçoila”! Você julga. Abre então um sorriso conivente (porque, afinal, você não é nada pudica), pensa um segundo, e enumera pronunciando as palavras sem som já completamente solidária com a situação da namorada charmosérrima daquela loira incorrigível: “Safada, desfrutável, ordinária, vadia, vagaba, reles, vúlgar, lasciva, tesoura, devassa, pistoleira, corrimão, galinha”...

3 comentários:

Anônimo disse...

Crônica bem humorada e de competência!
Paraabéns!

Maria Helena disse...

Adorei!!!
Surpresa aqui a cada poema, a cada texto a cada linha

Anônimo disse...

Affffff!!!!