Definitivamente
um mau hábito. Mas como não ceder a tentação? Ignorar a conversa alheia é
irrealizável quando ela atinge em cheio a nossa curiosidade. Seria como recusar
uma cantada da “Lúcia Veríssimo” em 1989. Não dava. Melhor se render à
indiscrição, como nos renderíamos à atriz, e se deliciar com juras de amor,
brigas, traições, aventuras, pequenas confissões privadas que absolutamente não
nos dizem respeito. Mas quem mandou elas se desenrolarem ao alcance da nossa
acurada audição?
Abrir mão
desse prazer é como ir ao Rio de Janeiro e não “fazer uma Carioca na Farme de
Amoêdo”. O Redentor que nos perdoe. Foi-se o tempo que ir a Cidade Maravilhosa,
significava apreciar o Corcovado e passear de Bondinho.
Conversas
alheias surgem do nada e absorvem a atenção. Acompanhá-las, porém, da trabalho.
No bar ou restaurante; você lá sentada, mortificada por ter saído no grupo
errado, quando, de repente, de suas costas, surge a frase balbuciada, porém
definitiva: “Na minha cama você não dorme mais”. Ó meu papa! Ninguém em sã
consciência ignora um ultimato desses.
A frase salva
sua noite, mas nessa posição fica difícil ouvir detalhes. Você arrasta então a
cadeira para xeretar. Rapidamente, vê duas jovens. Prossegue imiscuindo-se no
assunto alheio. Passando a mão disfarçadamente pelos cabelos, certifica-se de
que não descobriram seu interesse. Bem colocada, enfim, faz a jogada final:
Rompe relações com os chatos e chatas da sua mesa, força as solas das sandálias
contra o chão (as pontas não, se não marca o couro), pressiona as costas contra
o espaldar e inclina a cadeira para trás desafiando a lei da gravidade, mas bem
posicionada, se concentra em ouvir mais.
As palavras
vêm pausadas, sílabas pronunciadas lentamente, rispidamente, num tom acusador:
“Quenga, fácil, pública, jerebe, bagaxa, mische”... A voz deve ser daquela que
viu de frente. O silêncio breve e ela continua: “ vagabunda, mundana, marafaia,
marafona, dadeira, bisca, frega, catráia, bíscate, rameira, bagaceira, decaída,
puta e piranha”. Estupefata, você não se contém em sua excitação e corre em
busca de testemunhas. “Meu Deus! Ouviu? Ela deve ser professora de português! E
está uma fera”, você quase grita, pega e sacode o braço da mulher sentada ao
seu lado, que devolve um olhar espantado sob as sobrancelhas unidas e
franzidas, completamente chocada diante de sua agonia tão súbita depois de
tanto tempo indiferente.
Melhor não
falar com alguém tão desinteressante, você pensa. Volta apressada para a
refrega. O local na verdade um misto de bar e restaurante começa a encher. O
som propagado no ar agora vem tumultuado por várias vozes. “Hei de ouvir”. Você
clama. De repente capta: “Ela foi melhor do que eu?” Ó meu Papa! E agora? Ela
não devia ter perguntado isso. E se a namorada traidora cai na besteira de ser
honesta?
As pessoas não
paravam de chegar e se aglomerar entre as mesas. Num esforço, você aterrissa a
cadeira e olha descaradamente para lá. Através do vão, entre as costelas e o
braço direito da loira, de costas nuas, numa frente única deliciosa, avista um
fiapo da outra (a traída). A moça era de bem. Um pedaço até. A semente da
discórdia não deveria ser assim muito superior. E essa ainda tem bom
vocabulário! Namorada bonita com mais de mil palavras é coisa rara. Certamente,
a outra (o galho) foi pior. No máximo na mesma situação, ela conseguiria xingar
“vagabunda, puta, piranha”, apenas. E ainda usaria o masculino, por falta de
segurança para subjugar as palavras à sua personalidade.
Dez segundos e
mais nenhuma frase. Quinze segundos e nada. Você levanta. Vai ter de ir lá ver
o que ocorre. Mal se ergue, outra loira (uma habitué) vira-se e pergunta se
pode pegar a cadeira. Irritada, você responde grosseira. “Só vou ao toilette.
Mas se você quer tanto sentar, na volta sente-se no meu colo”. Desorientada a
loira (menos de mil palavras, com certeza) responde: “Ah! Tudo bem”. E aí põe a
dúvida: Era um “Tudo bem, não quero mais a cadeira” ou “Tudo bem, eu sento no
seu colo, com muito prazer”. No entanto, agora, nem saber, nem pensar em se
dispersar. Sorri e com dois passos parte para o grupo ao lado da mesa das
“amigas” em crise. Disfarça e atiça os sentidos.
“Eu te amo”,
você ouve sussurrar a “maleável” que armou o qüiproquó. “Eu também te amo”,
responde a tigresa do bom vocabulário. Desolada você observa. Chegaram ao The
End sem que você testemunhasse o melhor do filme. Elas, transpirando
naturalidade, armam o maior abraço (amasso), como se fossem apenas velhas
amigas se cumprimentando calorosamente após longa data. Olhando fixamente a
cena, em completo desalento, você quase chora quando a loira inacreditavelmente
abre os olhos, pisca para você e continua o abraço lhe observando. “Ó meu Papa!
Mas que leviana a moçoila”! Você julga. Abre então um sorriso conivente
(porque, afinal, você não é nada pudica), pensa um segundo, e enumera
pronunciando as palavras sem som já completamente solidária com a situação da
namorada charmosérrima daquela loira incorrigível: “Safada, desfrutável,
ordinária, vadia, vagaba, reles, vúlgar, lasciva, tesoura, devassa, pistoleira,
corrimão, galinha”...